quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

E são tantos os lados de mim






O dia passa com a sua ilustre nobreza de não agir como se  fosse um afastamento dele mesmo..passam na rua outros passos  só e juntos, não falam ou se falam não escuto e no entanto as vozes são-me todas tão claras. Por vezes é sempre a mesma sucessão de palavras que escrevo, que soletro fotograficamente como quem já lá pôs tudo . São  fogos fátuos as frases   alegres ou tristes que a tinta se dizem. Fico assim sobre as paginas breves  do tempo, como um breve ar em movimento. Por vezes tudo me “sangra e dói”.  Por vezes  sou como  um movimento esquecido, um som do passado, um grito humano  que canta, que chora. Mas tudo é tão escasso . São  tantos os  lados em mim, tantas as vozes exteriores que me são interiores, tantos os olhos que de mim olham. Mas tudo isto é uma estreita filosofia onde a alma  não entra. Uma paisagem repleta de chuva   com  coisas raras entre os brilhos involuntários  à roda dos olhos. Por mais que tente o avesso disto tudo me entra pela alma  dentro, como se ela fosse uma praça de encontros previamente marcados. Pobre sensibilidade humana em que me fundo, em que sonho e me extermino .  Carícias do teu olhar que em mim repousa talvez esta seja a arte divina de criar. De fazer de cada sensação a cama de onde retiro palavras. A metafísica é tão cheia de sensações que se prolongam para dentro, como se o  dentro exigisse  esse domínio  de ser  qualquer coisa inteira a que o pensamento dá forma .  

maria andersen

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

assim ardemos devagar sobre os abetos





não basta nomear a hora
nem dizer o álibi onde as cidades envelhecem
há tantas horas em que nos une uma nostalgia
e o mesmo exílio  nos cabe  dentro dos olhos –

já recolhemos pela vida tantos destroços
e nunca antes  o  amor   foi maior
assim  nos surpreende  o caminho  e a boca à mercê  do sonho
nunca  a vontade foi  tão desatinada e urgente
decerto que haverá gente
capaz de supor  o fundo deste sentimento
os becos e ruelas por onde andamos
há tanto para argumentar  nesse silêncio  táctil do cigarro na boca
e eu esta tenacidade de me erguer  sobre as dunas de Rimbaud
e fazer delas o teu olhar como o único ritual da vida
estou aqui e  olho o mar mais a sul
e percebo que de espelhos pouco sabia
o amor tem esta vertiginosa paciência
tem esta loucura por dentro da carne num lugar quase inacessível
e distintos são os contornos das nossas mãos
os poros  no torpor da boca
aqui o tempo nos redime de toda a solidão
e tão poucos são os que se abraçam como nós -
assim ardemos devagar sobre os abetos

sei de tantas coisas que não vejo
desse equilíbrio do mundo que em nós  faz a sede
e nunca ninguém  apaga este lume
este sabor a damasco  sobre a cintura 
este espanto que nos amarra  à vertigem
à calma de atravessar todo o tempo em nós
à lenta claridade onde amamos este secreto desígnio


maria andersen

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

a forma & a queda

Podia da sede dizer-te  a avidez
da fome dizer-te  a fartura
do olhar dizer-te  a distância
do tacto o sentir da matéria
do corto inteiro  a forma  & a queda
ou então dizer-te  coisa simples
como ir por aí
a desenhar na areia palavras cruzadas
um jogo de murmúrios  que nos agarram o peito
gestos  que as mãos pressentem nesta idade
em que arde o deslumbre junto aos olhos

o tempo geme uma saudade
vício das fontes   - o corpo ausente
& há tanto mar sonhado nas  nossas mãos
tantas viagens  pelas estações quentes
até que o amor amadureça
&  alimente a fecunda terra das nossas  bocas


maria andersen 

ventre nu chamando a língua




estou deitada no campo do pensamento,
numa espécie de deslumbre.
as vezes lavro de ternura a vida
- é tão profundo entrar no sorriso,
e trazer os olhos cheios de alaúdes
no lugar  onde se deita a solidão
sou como uma selva inteligente

ventre nu chamando a língua  
e a  boca mendiga 


maria andersen